História da Profissão
Uma resumida e interessante história sobre a Farmacologia
A Medicina e a Farmácia no Ocidente Cristão
1. A Medicina e a Farmácia monástica.
O início do desenvolvimento da medicina e da farmácia monástica é marcado pela fundação em 529 do Mosteiro de Montecassino por São Bento (c. 480-544) e pela redação por este da Regula Benedicti, em que um dos capítulos estabelecia a necessidade de cuidar dos enfermos, com a existência de um local próprio e de um religioso dedicado a esse serviço. Com base nesta norma, surgiu a figura do irmão enfermeiro e das celas para enfermos, a que se seguiram as enfermarias, as boticas e os jardins botânicos. Esta prática levou também a que os livros de medicina e de farmácia ocupassem um papel importante nos scriptoria dos conventos, onde os monges copiavam e guardavam manuscritos. Os mosteiros de Montecassino e de Saint Gall destacaram-se como locais de cultura e prática médico-farmacêutica, onde para além da cura de enfermos se desenvolveram escolas médicas que atingiram o auge do seu prestígio em finais do século IX.
Entre os autores religiosos que procuraram compendiar os conhecimentos greco-latinos, compilando e traduzindo para latim os textos dos manuscritos antigos guardados nos mosteiros, destacam-se Cassiodoro, Isidoro de Sevilha e Hildegarde de Bingen. Cassiodoro Senator (c. 480-575) fundou em 537 o mosteiro de Vivarium, na região da Calábria onde nascera,e onde se desenvolveu uma escola médica monástica em que se traduziram e copiaram obras de autores greco-romanos como Hipócrates, Dioscórides, Galeno e outros. Cassiodoro escreveu um texto enciclopédico de história natural e aconselhou os religiosos a estudar a terapêutica pelas plantas medicinais. Isidoro de Sevilha (c. 560-636) foi bispo da cidade por cujo nome ficou conhecido. Para além de vários temas de religião, escreveu a obra enciclopédica Etymologiarum Libri XX, compendiando em vinte livros os conhecimentos do seu tempo sobre as artes e as ciências. Esta obra parece ter sido escrita para o ensino na escola fundada por Leandro, bispo de Sevilha e irmão de Isidoro, que este também dirigiu e que constituiu um importante centro de cultura. Alguns livros desta obra são dedicados à Medicina, ao corpo humano, à História Natural e à dietética.
Isidoro de Sevilha atribui um lugar de destaque à Medicina entre as artes liberais, o que levou o bispo Teodulfo de Orleans a proclamá-la como a oitava arte liberal, digna de ser ensinada nas escolas monásticas (nos próprios mosteiros) ou nas escolas episcopais ou catedralícias (em seminários), junto com as sete que constituíam o trivium (gramática, retórica e dialéctica) e o quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia). A partir do século IX, a Medicina começou a ser ensinada no quadrivium, integrada na Physica. Daqui foi originada a denominação de físicos, pela qual eram conhecidos os médicos na Idade Média.
Além de outros autores religiosos que escreveram sobre Medicina, destacamos ainda Hildegarde de Bingen (1098-1179), que foi abadessa do Convento beneditino de Disibodenberg e fundou o de Ruperstsberg, perto de Bingen. Escreveu textos sobre o uso medicinal de plantas, animais e vegetais e descrevendo as doenças e os seus medicamentos seguindo a ordenação denominada ab capitae ad calcem (da cabeça aos pés). Entre os aspectos que tornam a obra de Hildegarde singular destaca-se a sua atenção aos problemas do foro ginecológico, numa perspectiva que se chocava com a visão tradicionalmente negativa da mulher na cultura medieval.
2. Canais dos conhecimentos greco-árabes para o Ocidente Cristão.
2.1. Salerno.
Por volta do século X foi criada em Salerno uma Civitas Hippocratica, uma comunidade de médicos que estudava, compendiava e ensinava a medicina. Tratava-se de um centro laico, embora em estreita ligação com o mosteiro de Montecassino. Pouco se sabe da sua fundação, à excepção de uma lenda que a atribuía a quatro médicos, Ponto, grego, Helinus, judeu, Adela, árabe e Salernus, latino, a qual, se a mais não corresponder, reflete as influências culturais presentes. As primeiras figuras da escola foram Garioponto (c. 970-1050), autor de uma epítome de textos bizantinos denominado Passionarius Galeni e Alfano (c. 1015-1085), médico que aprendeu em Montecassino e foi arcebispo de Salerno, cuja obra é igualmente de influência bizantina e greco-síria.
A influência médica árabe e o conseqüente amadurecimento da personalidade própria do Studium Salernitanum dá-se em finais do século XI com Constantino o Africano (c. 1020-1087). Natural de Cartago, dedicou-se ao comércio de drogas e viajou entre o Oriente e a Europa até se instalar em Salerno, trazendo consigo uma seleção de vários manuscritos médicos árabes. Munido de uma carta de recomendação do arcebispo Alfano, foi recebido no mosteiro de Montecassino, onde se converteu ao cristianismo. Na qualidade de irmão leigo, traduziu várias obras médicas importantes do árabe para o latim, num total de cerca de três dezenas de textos, durante os anos seguintes.
Das obras nascidas da Escola de Salerno durante os séculos XII e XIII, destacamos apenas algumas. O Tractatus de aegritudinum curatione é uma obra coletiva onde se reúnem os ensinamentos sobre medicina geral de vários mestres de Salerno. As doenças encontram-se dispostas na ordem já referida da cabeça aos pés. Entre os autores citados, encontra-se uma mulher, Trotula, a quem se deverá parte da obra De passionibus mulierum, que trata de ginecologia, obstetrícia e cosmética. O conjunto dos ensinamentos ministrados aos estudantes de Salerno encontram-se patentes nas diferentes versões das Articella, um conjunto de textos didáticos que incluem normalmente a Isagoge de Joahnitius, a In arte parva de Galeno, o Prognostikón de Hipócrates, o Liber pulsum de Philaretros e o Liber urinarum de Teophilus.
Algumas versões incluem outros textos, como os Aforismos de Hipócrates e parte do Canon de Avicena. As Articella influenciaram grandemente o ensino médico por toda a Europa, constituindo o corpo de doutrina médica utilizado inicialmente nas Universidades e foram impressas pela primeira vez em Pádua em 1476. Muito conhecido foi também o Regimen Sanitatis Salernitanus ou Flos medicinae (c. 1300), um grande poema com cerca de 360 versos, de que se conhecem três centenas de edições em várias línguas, sendo a primeira impressa a de Pisa, em 1484. Inclui um conjunto de conselhos relativos a higiene e saúde que tiveram grande e prolongada influência, tanto na medicina erudita como na popular.
Nas obras de conteúdo farmacêutico e terapêutico destacam-se o Antidotarium de Nicolaus Salernitanus (fl. 1110-1150) e o De simplici Medicina de Mattheus Platearius, o Jovem (c. 1120-1161), também conhecido por Circa instans, as duas palavras com que se inicia o texto. O primeiro contém umas 140 fórmulas farmacêuticas ordenadas alfabeticamente e um apêndice sobre pesos e medidas. Foi um dos receituários mais utilizados por médicos e farmacêuticos durante a Idade Média. Em 1322 a Faculdade de Medicina de Paris determinou ser obrigatória a sua existência em todas as boticas.
O segundo inclui mais de duas centenas e meia de artigos referentes a drogas medicinais igualmente dispostas alfabeticamente, onde trata das suas propriedades, etimologia e história. Ambos foram repetidamente editados em conjunto durante o século XVI.
A função universitária de Salerno fortaleceu-se desde finais do século XII, quando já se encontravam regulamentados os exames a ser realizados pelos seus alunos e quando se começou a exigir que os médicos fossem licenciados por Salerno. A primeira titulação médica foi regulamentada em 1140 por Rogério II da Sicília, estabelecendo a obrigatoriedade de um exame oficial para o exercício da medicina. Esta disposição foi depois reafirmada em 1240 no édito de Melfi promulgado por Frederico II, a que nos referiremos adiante.
Fora de Salerno, também se podem encontrar alguns textos médico-farmacêuticos de alguma importância durante este período, como o Macer Floridus atribuído a Otto de Meudon , um poema que trata das virtudes de 77 plantas.
2.2. Toledo.
A reconquista de Toledo em 1085 veio pôr à disposição dos cristãos um apreciável conjunto de manuscritos árabes que aí se tinham acumulado desde a invasão em 711. Por volta de 1135, o arcebispo da cidade criou uma escola de tradutores constituída por cristãos e judeus. O trabalho deste grupo iniciou-se com a tradução do Corão, seguida de obras de Ptolomeu e Aristóteles. Em 1144 juntou-se a esta escola Gerardo de Cremona (c. 1114-1187), o que lhe deu um grande impulso. Gerardo traduziu um total de 90 obras de várias áreas do saber, incluindo 24 de medicina.
Entre os autores médicos traduzidos contam-se Galeno, Hipócrates, Al-Israili, Razés, Al-Wafid, Serapião, Abulcassis, Al-Kindi e Avicena. Depois da morte de Gerardo de Cremona o trabalho de tradução foi continuado por vários dos seus colaboradores e discípulos. O período de ouro das traduções do árabe para o latim terminou em meados do século XIII. Durante este mesmo período, mas fora de Toledo e sem passar pelo árabe, é de referir o trabalho de Burgundio de Pisa (1110-1193), que traduziu diretamente do grego ao latim os Aforismos de Hipócrates e vários livros de Galeno, incluindo o Methodus medendi.
3. Farmácia laica e separação das profissões médicas.
3.1. As universidades.
A Escola de Salerno foi o centro da formação médica na Europa até finais do século XII. Os médicos aí formados espalharam-se por todo o continente ao mesmo tempo que se criavam as universidades e se desenvolvia o ensino da Medicina. Algum ensino médico começou a ser ministrado ainda nas escolas clericais, a partir da divisão da última arte do quadrivium, a astronomia, em duas partes, uma extraterrestre, a astronomia propriamente dita, e outra terrestre, a física. A Medicina, como parte fundamental desta última, integra-se no conjunto do sistema universal do saber e da filosofia e desta forma deixa de ser um mero ofício manual. Esta tendência, a que já se assistira no mundo árabe, aprofunda-se no mundo cristão, apoiando-se no novo corpo teórico de conhecimentos trazidos igualmente do mundo islâmico por via de Salerno e Toledo.
A criação das universidades nasce da necessidade de professores e alunos criarem uma estrutura própria, diferenciada das estruturas clericais originais, capaz de afirmar o seus direitos e privilégios. Em Salerno e Montpellier, foram os professores médicos que estiveram na origem do impulso para a criação das universidades, mas em regra foram outras faculdades que dominaram a criação dos studium generale. Em Montpellier, a escola médica foi autorizada em 1180, mais de cem anos antes da criação da própria universidade.
Em Paris, a Universidade foi criada por volta de 1200, a partir da respectiva escola catedralícia, sendo dominada pelos teólogos. Na universidade de Bolonha dominavam inicialmente os juristas. Na de Oxford, prevaleciam os teólogos. Em todas estas universidades as faculdades de medicina só foram criadas mais tarde.
No ensino da medicina, o estudante passava por três fases, cada uma das quais correspondendo a um título: bacharel, licenciado e magister, este substituído mais tarde pelo título de doutor. O bacharelato era obtido através de um ou mais exames, depois de quatro anos de estudos, um em Artes e três em Medicina. O licenciado tinha que desenvolver um certo número de textos na forma de lições próprias, assim como assistir a três séries de lições teóricas e uma prática. Este título dava direito (licença) ao exercício da Medicina. Para ensinar na universidade tinham que obter o título de magister, através de um período de prática e da submissão a dois novos exames. No século XIII, depois de este título ter sido introduzido na Faculdade de Direito em Bolonha, o título de doutor começou a ser igualmente concedido, substituindo o de magister nas faculdades de Medicina. Embora se destinasse de início aos que iam ensinar nas universidades, também passou a ser atribuído a outros médicos.
3.2. Separação das profissões médicas.
O desenvolvimento do ensino universitário da medicina deu-se ao mesmo tempo que sofreu um novo impulso o comércio de especiarias orientais através do Mediterrâneo e cresceu o número dos que se dedicavam ao comércio ambulante de drogas e especiarias. Estes comerciantes, os especieiros, foram sofrendo um progressivo processo de especialização na preparação de medicamentos, aumentando a sua perícia e formação técnica e perdendo progressivamente o caráter ambulante, à medida que, a partir do século XI, a formação médica em geral e a assimilação do saber médico greco-romano aumentavam e que as condições econômico-sociais, o desenvolvimento do comércio e crescimentos das cidades, o permitiam. O processo de nobilitação da profissão médica, associado ao domínio do latim e ao ensino universitário, implicava o abandono progressivo das funções manuais, incluindo a preparação de medicamentos, deixando o campo aberto para o crescimento do número de boticários. O mesmo processo de separação se deu entre a medicina, chamada dogmática, e a cirurgia, que juntamente com a farmácia constituíam a Medicina ministrante.
Ao mesmo tempo que os médicos passavam a ter um ensino universitário com professores especializados, os farmacêuticos e cirurgiões mantinham sua formação com um mestre estabelecido, um tipo de aprendizagem que era comum às restantes profissões mais técnicas. Os boticários, cujo nome se encontra etimologicamente relacionado com a existência de um armazém fixo, foram surgindo por toda a Europa, substituindo os especieiros, mesmo nos idiomas em que esta denominação se manteve.
A separação de fato entre as duas profissões foi seguida pela separação legal. O primeiro caso em que tal aconteceu terá sido em Arlés, França, onde posturas municipais redigidas em 1162 determinaram a separação das duas profissões. Em 1240, Frederico II da Sicília e Nápoles, através do chamado Édito de Melfi, reafirmou a obrigatoriedade de um curso de tipo superior em Salerno para os médicos, ao mesmo tempo que proibiu qualquer sociedade entre médicos e farmacêuticos e determinou que estes tinham de dispensar os medicamentos de acordo com as receitas médicas e as normas da arte provenientes de Salerno. O mesmo diploma introduziu o princípio da necessidade de algum tipo de controle dos preços dos medicamentos e do licenciamento e inspeção da atividade farmacêutica. Estas normas foram progressivamente adotadas pela Europa. Em França, as cidades de Avignon (1242) e Nice (1274) proibiram a sociedade entre farmacêuticos e médicos. Na Europa central, Basileia também separou as duas profissões entre finais do século XIII e princípios do século XIV. Em Portugal a obrigatoriedade dessa separação foi determinada em 1462.
A Medicina e a Farmácia no mundo árabe
1. O final do mundo antigo.
1.1. Transformações operadas no império Romano.
Ao reinado de Augusto, imperador absoluto de 31 a.C. até 14 d.C., seguiram-se quatro dinastias governando a Pax Romana em todo o império. Foi o Alto Império. Em 235, com o assassínio de Severo Alexandre, iniciou-se o Baixo Império, dividido em Baixo Império pagão (235-305) e Baixo Império cristão (306-476). Foi durante o reinado de Diocleciano, o mais importante dos monarcas do Baixo Império pagão, que viveram e foram martirizados os santos Cosme e Damião, principais padroeiros da Medicina e da Farmácia durante a Idade Média e a Idade Moderna. O Baixo Império cristão iniciou-se com o reinado de Constantino, que concedeu a liberdade de culto aos cristãos através do Édito de Milão (313 d.C.) e fundou a cidade de Constantinopla em Bizâncio. Com a morte do imperador Teodósio (395), o Império foi partilhado entre os seus dois filhos, um dos quais ficou a governar o Império romano do Ocidente e o outro o Império romano do Oriente. No século V, as invasões germânicas aniquilaram o Império romano do Ocidente. O Império romano do Oriente ou Bizantino manteve-se até à conquista de Constantinopla pelos turcos em 1453.
1.2. Medicina Bizantina.
O Império romano do Oriente manteve a língua e a cultura grega como dominantes. Os locais onde se cultivava a ciência e a cultura médicas eram Alexandria, Atenas, assim como Constantinopla e várias localidades da Ásia Menor. Entre os médicos bizantinos destacaram-se vários autores de obras médicas de caráter enciclopédico, como Oribásio (c. 325-403) de Pérgamo, Aecio de Amida (fl. 520-560) e Paulo de Egina (c. 625-690) que exerceu em Alexandria e aí continuou depois da sua conquista pelos árabes em 640. O sétimo livro da sua Epitome medicae trata dos medicamentos simples e compostos e baseou-se em Dioscórides.
1.3. As heresias do Séc. V.
Nestorius, patriarca de Constantinopla, foi condenado como herege no Concílio de Efeso (431). Os seus seguidores foram desterrados para oriente, instalando-se em Edessa, na Síria, onde existia uma importante escola científica. Esta acabou por ser encerrada em 489, e os nestorianos viram-se obrigados a partir para Nisibis, e mesmo a abandonar o Império bizantino e a procurar refúgio na Pérsia, onde foram bem recebidos pelos monarcas sassânidas, apesar de a religião oficial ser o zoroastrismo. Entre os emigrados contava-se um grande número de médicos e outros homens de ciência, que levaram consigo grande número de obras científicas em grego. Após 451, o número destes foi engrossado pelos partidários da heresia monofisita, particularmente implantada no Egito e também na Síria e Ásia Menor. Em Gundishapur, onde desde o século III existia um centro de estudos, concentraram-se os médicos gregos nestorianos expulsos de Edessa, aos quais se vieram depois juntar os da escola de Atenas, encerrada por Justiniano em 529. Estes emigrados do Império bizantino iniciaram um movimento de tradução das obras científicas gregas, primeiro para o siríaco e depois para o árabe.
2. O Islã e a herança greco-romana.
2.1. A ascensão do Islão.
Os árabes iniciaram a sua expansão em 634, depois da conversão de toda a Arábia à fé islâmica revelada por Maomé (570-632). Derrotaram os persas e os bizantinos e conquistaram rapidamente a Síria, a Palestina, a Mesopotâmia, o Egipto, Tunis e a Península Ibérica (711). Na Europa, só foram detidos em Poitiers em 732, mas chegaram até à Índia em 1001. Os povos conquistados, nomeadamente os monofisitas, os nestorianos e os persas adeptos de Zoroastro, foram integrados no império, mantendo alguns direitos quanto á manutenção das suas culturas e religiões. O grego só foi proibido por volta de 700. O árabe tornou-se a língua oficial comum a todo o império islâmico, incluindo a literatura filosófica e científica, principalmente desde o período dos Abássidas, com a transferência da capital de Damasco, na Síria, para Bagdade, na Mesopotâmia (750).
2.2. A herança da cultura helénica.
A medicina árabe era pouco desenvolvida no início da expansão do Islão, tendo sido o contacto com os sábios nestorianos que a elevou e lhe permitiu atingir grande importância nos séculos seguintes. Contudo, não é de desprezar o papel da religião no desenvolvimento da medicina islâmica, não só por identificar várias práticas sanitárias com cerimónias rituais e regras religiosas, mas principalmente por atribuir à prática e ao conhecimento médico um elevado conteúdo ético e religioso. Para o hakim, o médico islâmico, a assistência aos doentes e a contínua busca do conhecimento eram ambas obrigações para seguir o caminho da salvação. O início do apoio dado pelos dirigentes islâmicos à medicina grega corporizada pelos médicos nestorianos, costuma ser identificado com a cura do califa de Bagdá al-Mansur em 765 pelo médico Girgis ibn Gibril do hospital nestoriano de Gundishapur, em resultado da qual o califa terá ordenado a tradução do grego para árabe de vários autores médicos clássicos. Entre os médicos nestorianos que iniciaram essa tarefa destacam-se os nomes de Abu Zakariya Yuhanna ibn Masawayh (777-857), conhecido na Europa por Mesué o velho João Damasceno e do seu discípulo Abu Zayd Hunayn ibn Ishaq al-Ibadi (808-873), latinizado como Johannitius. Ambos eram filhos de farmacêuticos nestorianos e exerceram em Bagdade, onde Hunayn dirigiu uma escola de tradutores, onde foram traduzidas do grego e do sírio para árabe obras de Aristóteles, Hipócrates, Dioscórides, Galeno e outros autores.
2.3. A literatura médico-farmacêutica árabe.
A Medicina islâmica baseou-se na teoria humoral. No campo da farmácia e do conhecimento dos medicamentos o seu nível foi muito elevado, não só pela incorporação dos conhecimentos clássicos mas também pelos contributos próprios, em parte devidos às possibilidades abertas pela grande extensão do império islâmico. Os árabes terão acrescentado cerca de três a quatro centenas ao cerca de um milhar de drogas medicinais conhecidas na Antiguidade clássica.
Al-Kindi (c. 801-c. 866), de seu nome completo Abu Yusuf ya qub ibn Ishaq Al-Sabbah, viveu em Bagdade, onde foi contemporâneo da primeira geração de tradutores da literatura grega para o árabe e chegou a ser encarregado da educação do filho do califa. Como autor, Al-Kindi dedicou-se à filosofia e à ciência, de um ponto de vista enciclopédico. Escreveu, além de muitas outras obras de filosofia e ciência, várias de cunho farmacêutico como um Aqrabadhin, um formulário organizado título indica, se dedica ao estudo dos graus de intensidade das qualidades (frio, húmido, etc.) dos medicamentos compostos. Este problema fora anteriormente tratado pelos autores clássicos, como Galeno, apenas para os medicamentos simples. Al-Kindi propôs resolver o problema com uma fórmula matemática através da qual a Intensidade de uma qualidade seria igual ao logaritmo de base 2 da proporção entre essa qualidade e a oposta no medicamento composto.
Legenda:
I = Grau de intensidade de uma qualidade.
Q = Número de partes da qualidade (p.e. Quente).
Qo = N.º de partes da qualidade oposta (p.e. Frio).
Al-Biruni (973-1050), ou Abu Rayhan Muhammad ibn Ahmad, nasceu e cresceu na região a sul do Mar de Aral e faleceu no Afeganistão. Além de quase uma centena e meia de obras no campo da astronomia, matemática, geografia e história, e muitas outras disciplinas, escreveu uma importante obra farmacêutica, a Farmacologia ou Kitab al-saydala i’l-tibb. Esta obra, além de uma introdução em cinco capítulos onde trata de questões de terminologia farmacêutica e teoria farmacológica, contém entradas para cerca de 720 medicamentos. Para cada entrada, Al-Biruni apresenta geralmente o nome da substância em árabe, grego, siríaco, persa e num idioma indiano, seguido dos seus sinônimos em árabe e da descrição do fármaco, sua origem e propriedades terapêuticas, com integral referência das fontes utilizadas.
Ibn Sina, ou Abu ‘Ali al-Husayn ibn ‘Abdallah, conhecido no Ocidente como Avicena (980-1037) nasceu na Ásia central e faleceu em Hamadan, na Pérsia. Foi médico, jurista, professor e ocupou cargos políticos. A sua obra é enorme, quase 270 títulos tratando de filosofia e ciência. A sua classificação das ciências naturais ou físicas previa oito ciências principais e sete subordinadas.
Nestas última incluía a Medicina (al-tibb) e a Alquimia (al-kimya’). A principal obra médica de Ibn Sina é o enciclopédico al-Qanun ou Canon, mais considerado no seu tempo que a obra de Razés ou de Galeno. A parte farmacêutica encontra-se nos livros II e V que tratam, respectivamente, da “Matéria médica” e dos “Medicamentos compostos”. O Livro II encontra-se dividido em duas partes, a primeira tratando das propriedades das drogas, incluindo as qualidades, virtudes e modos de conservação, e a segunda contendo uma lista de fármacos ordenados alfabeticamente, com as suas virtudes terapêuticas. O al-Qanun foi traduzido para latim por Gerardo de Cremona e teve várias edições.
Ibn al-Baytar (c. 1190-1248) nasceu em Málaga e faleceu em Damasco. Estudou em Sevilha e emigrou para o Oriente c. 1220, estabelecendo-se no Cairo, onde foi nomeado primeiro ervanário pelo sultão. Nessa qualidade, viajou por vários países do Médio Oriente. Escreveu várias obras de cunho farmacêutico, das quais as duas mais importantes são o Al-Mughni i’l-adwiya al-mufrada, onde trata dos fármacos indicados para várias doenças, e o Al-Jami’ li-mufradat al-adwiya wa’l-aghdhiya, onde trata de cerca de 1.400 fármacos dos três reinos. O principal contributo de Ibn al-Baytar consistiu na sistematização do conhecimento de novas drogas introduzidas pelos árabes na Medicina durante a Idade Média.
Igualmente muito importante foi o contributo árabe para o desenvolvimento das técnicas e operações unitárias físico-químicas, como a destilação, sublimação, cristalização e filtração, descritas por Geber, ou Jabir ibn Hayyan (c.702-765).
Abulcassis (c.936-c.1013), Al-Zahrawi, Abu’l-Qasim Khalaf ibn ‘Abbas, nasceu e viveu em al-Zahra’, perto de Córdoba, no período de maior florescimento intelectual no al-Andalus. Abulcassis exerceu a medicina, a farmácia e a cirurgia e escreveu uma enciclopédia médica em trinta tratados, o al-Tasri li-man ‘ajiza ‘an al-ta’li, terminada por volta do ano 1000. Aí trata de medicina, de cirurgia, de farmácia, matéria médica, química farmacêutica e cosmética, entre muitos outros assuntos. Abulcassis enriqueceu o conhecimento da matéria médica com descrições da flora e fauna ibéricas e tratou da preparação e purificação de várias substâncias químicas medicinais. O capítulo XXVIII do Tasri foi traduzido para latim com o título de Liber servitoris e foi muito apreciado, nomeadamente devido à sua informação sobre medicamentos químicos.
O toledano Ibn Wafid, conhecido por Abenguefit (fl. c. 1008-1075), criador de um jardim botânico em Toledo, escreveu um “Livro dos medicamentos simples” (Kitab al-adwiya al-mufrada, onde sintetizou as obras sobre matéria médica de Dioscórides e Galeno, assim como uma farmacopéia e manual de terapêutica intitulada “Guia da Medicina” (Kitab al-rashshad i al-tibb). Também o geógrafo hispano-árabe al-Bakri (c.1010-1094), que viveu na Andaluzia, terá escrito um tratado sobre medicamentos simples, hoje perdido, sendo citado como uma autoridade em matéria médica por al-Ghafiqi e Ibn al-Baytar. O sevilhano Abu Marwan Ibn Zuhr, conhecido pelo nome latinizado de Avenzoar (c. 1092-1162), escreveu uma obra sobre a teriaca, o al-Tiryaq al-sab’ini.
2.4. A Farmácia como profissão autônoma.
O mundo árabe foi o primeiro a desenvolver uma divisão de trabalho entre médicos e farmacêuticos. Em Bagdad estabeleceram-se locais de venda de drogas e medicamentos. Muitos desses estabelecimentos seriam dirigidos por comerciantes de fraca preparação técnico-científica, o al-attar, mas desde o séc. VIII que também passou a existir um outro profissional de mais elevada formação, o Sayadilah.